João Luís Simões

Ciclo de Exposições na Ante-Sala e Salão da BASE
Exposição Lusitânia Express de João Luís Simões 

Texto de Miguel Meruje

A exposição de João Luís Simões n’A Base traz o espírito cáustico de uma figuração animada em que, através de desenhos e pinturas, o artista cria grupos de pessoas que se entreolham lançando simultaneamente múltiplos olhares. A nomenclatura das obras de Lusitânia Express denuncia uma reversão dos valores estabelecidos como protesto, uma caminhada no sentido contrário da identidade em direcção ao anonimato. De conduta contrária ao bom senso, as figuras são jocosas pelas conexões que estabelecem entre si e pela atitude com que nos recebem na harmonia arrítmica que João Luís Simões pinta.

Ao retorcer as convenções, como nas partes do rosto que se sustêm desconectadas do corpo, desligadas da estrutura anatómica das figuras, destacam-se os olhares sumiços, os raiados a sangue e raiva, e aqueles que fazem por se perder no meio dos outros. Os algos que carregam, ocultados nas faces expostas, e que são envolvidos pela estranheza de máscaras faciais, são parte de um jogo em que a aparência revela algo sobre a interioridade. Tal como precisamos de ver para pensar, também é no processo revelatório que compreendemos que a verdade das coisas não se expõe no imediato, pois o que captamos é somente a aparência de algo.

Vista da Exposição Lusitânia Express

Lusitânia Express é um ensaio obsessivo para melhorar o estudo de um tema e as suas respectivas variações. Para a desumanização da figura, revelada pelo processo em como o espaço é invertido num proto-colorismo de gosto refinado, João Luís Simões aplica a tinta livre de convenções. São obras de um artista de artistas, consciente da história da figuração, onde aquilo que é desfocado também se destaca, contextualizado e emoldurado pela força da visão, onde as cores surgem mastigadas e truculentas, consumidas pela luz algures fora da superfície pictórica.

Todas estas criaturas — e as respectivas facetas irrequietas que exibem — mascaram a fragilidade de seres que são perseguidos pelos dois pólos do humor e da tragédia.  Na loucura do isolamento auto-infligido, há o esborrachar das feições que coloca estas obras para lá da apreensão total, pois pertencem a um lugar estranho, pós-civilização, em que paira uma nuvem de disformidade que obstrui as verdadeiras expressões, o real sentimento. Acrescente-se o elemento obscuro, mais selvagem, visões de um pesadelo convertido numa expressão que ganha vida e desafia a morte. Nesta dicotomia entre o isolamento das figuras e o desejo de contacto humano temos de fazer arte num mundo separado do real, nós que ao acreditarmos em teorias, vivemos o real: o nosso real que é ilusório.

Duas figuras levantadas. 2023. Óleo sobre tela, 40 x 40 cm

Desenho e pintura para João Luís Simões são meios alternativos de uma mesma linguagem expressionista, que o artista reutiliza, mas subvertendo-a a seu bel-prazer. Aliado da ironia, questiona o papel da história, questiona o real. Esse questionamento tem uma simultaneidade com o renegar do carácter progressivo da arte, bem como das suas regras, como outros anteriormente promoveram. O situacionista Raoul Vaneigem dizia em 1967, em ‘The Revolution of Everyday Life‘, que a definição de niilismo de Vasily Rozanov (1856-1919) era a melhor: “A audiência prepara-se para deixar os seus lugares. Altura de recolher os casacos e ir para casa.  Eles viram-se… não há mais casacos nem mais casa.”

As obras são uma construção sobre o vazio interior da alma, edificada em algo superior a si, silencioso, onde a revelação através da materialidade das composições vai destapando o invisível. O traço espontâneo, todavia rígido, é a súmula de uma técnica elaborada que dispensa camadas sobrepostas — mas que, no mesmo plano, lacera.

Vista da Exposição Lusitânia Express

Também o corte psicológico das figuras é um enigma num tempo suspenso, que é errado definirmos como pintura retratista, mas que faz parte de uma corrente que corrompe a beleza pela força da carne. A identidade de cada um dos seres, mesmo no reerguer das feições desfeitas é denunciada pelos seus olhos, como janela da mente. Essa estrada que nos leva do exterior, da semelhança das formas, para o interior, para a alma que deve ser estimulada, tem o primeiro passo num confronto que deriva da conversão dos elementos formais como a linha e a cor numa conversação com o espectador em diferido.

A viragem que o artista promove vem do desacreditar dos mitos, pintando e desenhando um abandono da racionalidade, afastando-se do mundo moderno, caracterizado por um regresso dos que esqueceram a necessidade de progressão, para algo mais optimista e de maior proximidade. O modernismo do trabalho chama para o seu interior os olhos que anseiam mergulhar na obra. Trocamos a contemplação pela sensação, pela experiência. Não obstante, em tempos de ambiguidade e incerteza, é pela arte que entranhamos o entediamento de outros, roubamos mutuamente a solidão e assistimos e contribuímos para o teatro virtual do ser humano moderno, sozinho no meio da multidão.

Figura Sentada. 2023. Óleo sobre tela, 30 x 25 cm

Contudo, se visitarmos sozinhos uma galeria, onde nos confrontamos com objectos produzidos pelo artista em isolamento num estúdio, estes proporcionam uma espécie de espaço privado a ser usado para uma experiência íntima da arte, em que somos nós a tentar entender o significado do que se nos apresenta, e a procurar relacioná-lo connosco.

Para quem encara a repetição infeliz, com a infinidade do seu movimento recorrente, pode haver a aparência de que tudo é novo. E João Luís Simões parte de um estilo procurando novas combinações em busca do que está oculto, sem querer repetições. A repetição em si leva à imaterialidade, com o perigo de a imitação como mera retórica ser incapaz de revelar a clareza. Mas se não pensarmos na repetição como paródia, ou nas delimitações que uma reprodução traz, conseguimos retirar prazer da emoção estética que a arte provoca em nós, uma emoção não replicável nos encontros quotidianos que temos, seja pela aura de um objecto de arte, seja pela sua forma.

Vista da Exposição Lusitânia Express

Do armazém cultural a que João Luís Simões vai desembargar alguns valores bem encaixotados é trazido um assalto lento aos sentidos, um humor pouco histérico e perverso, como o dos palhaços que causam medo, uma quase necessidade de estabelecer relações entre a presa e o predador: todos temos uma posição a ocupar, sendo que ela é intercambial. O corpo destes desenhos e pinturas é disforme, com múltiplos intervenientes que se estudam, e mantém sobre vigilância atenta os seus pares: os olhos esgazeados de um louco, a sanidade forçada de quem o acompanha, as caveiras que consomem a humanidade e a experiência desconcertante de convivência. No caso de Lusitânia Express, temos uma captação pluriangular, porque todos temos vários ‘eus‘, que, ora se sobrepõem, ora se superintendem, cedendo espaço de revelação a cada uma dessas vertentes de personalidade que coexistem e que, acompanhando um tempo de variações extremas, se revelam nos nossos comportamentos societais.

Cinco caras. Óleo sobre tela, 42 x 42 cm

A BASE – abaseescoladearte.pt

Miguel Meruje – miguelmeruje.com